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w4.6.03


Capítulo 2
Lembranças


Em tão ínfimo e intenso momento, como numa fusão de imagens, pôde se lembrar de sua infância na pacata cidade portuária. Tudo lhe parecia tão real. Lembrou-se do tempo em que ia pescar com seu pai nas águas límpidas do rio que cortava a cidade. Lembrou-se de que nunca trazia o molinete certo para o peixe que pretendiam pescar. Seu pai, por isso, cansava de ralhar com ele. Mas era esse seu pai? Não conseguia distinguir direito aquela figura sisuda que postava à sua frente. Seu pai sempre fora uma pessoa serena, de tez corada que caracteriza os velhos bonachões. Thomas lembrou-se também do dia em que o cassino chegara ao vilarejo e toda a perdição que o primeiro causou aos moradores. A bebida barata, a fétida jogatina, as mulheres de vida fácil, os estelionatários, os picaretas, o crime organizado. Um milionário benfeitor que só pensava no bem estar do povo. Estava errado. Seria mais sensato começar construindo um daqueles grandes supermercados que vemos na capital. Apregoava que o sucesso de uma sociedade só poderia vir com o jogo legalizado. Mas seria esse um cassino? Não conseguia identificá-lo como tal. Para Thomas, agora, a construção mais parecia uma velha loja de penhores com grandes e iluminados lustres orientais. Lembrou-se também do cachorro de pêlo lustroso que tivera em sua infância. Tinha um rabo que movia-se freneticamente de um lado ao outro, conferindo-lhe uma invejosa e rara alegria. Este não parecia ser o seu animal. Embora notasse certa familiaridade com Paçoca, o cachorro não era tão dócil quanto antigamente. Thomas, em suas memórias, procurou fugir do cão. Procurou fugir de seus dentes afiados. A boca se aproximando, um iminente rasgo em sua canela surgindo.

Então recobrou-se para uma experiência ainda pior. Thomas estava agora numa imensa sala de espelhos. Mas, ao contrário daquelas grandes tendas de parques de diversão, sua imagem não era refletida por nenhum dos objetos. Não tinha aparência larga, curta, encolhida, magra, gorda, ou coisa do gênero. Deduziu, na conversa que vinha tendo com o misterioso garoto, que sua imagem só poderia ter um reflexo se descobrisse quem, de fato, Thomas era. Mas onde poderia conseguir alguma pista? Sempre detestou aqueles jogos de adivinhação de priscas eras com seus amigos de pião e bafo. Detestava o fato de um de seus cretinos coleguinhas se colocasse naquela posição de sabichão para humilhá-lo com seus indefectíveis enigmas. De tanta raiva que estava sentindo, Thomas deu um berro. Suas cordas vocais não emitiram nenhum som. Por outro lado, provocaram vibrações tão fortes que todos os espelhos da sala se quebraram. Presumiu que acabara de capitalizar exatos 77 anos de azar.

No chão coberto por diminutos cacos de vidro, Thomas olhou para seus pés. Estavam descalços. Antes que pudesse urrar de dor, fechou os olhos. Encontrava-se imerso nas águas do rio que costumava pescar com o pai. Teve um susto ao olhar novamente para seus membros inferiores e constatar que eles eram pequenas barbatanas. Embora pudesse ter a habilidade de nadar, não estava conseguindo. Começou a se afogar. O fôlego sumindo, a visão turva surgindo, o último pedido suplicado. Antes de desmaiar, foi socorrido pelo anzol de uma vara de pescar. Sentiu o gosto de sangue em seus lábios. Logo foi expulso das águas, indo parar numa cestinha de vime qualquer. Infelizmente não teve tempo de conformar-se com a situação. No instante seguinte, Thomas percebeu que podia caminhar novamente. Saiu da cesta de pescaria e deu de cara com um gigantesco parque.

Com uma enorme área verde, Thomas não soube para onde dar o primeiro passo. Percebeu ao seu redor todo o esplendor que aquela flora monumental proporcionava à sua visão. Viu os passarinhos assobiando uma singela canção, as marmotas à procura de alimento, as violetas exalando um perfume agradável às suas narinas, as folhas que começavam a cair no chão no primeiro dia de primavera. Então, sentindo um alívio irrompendo a alma, Thomas deu o primeiro passo. A paisagem tornou-se sombria. As árvores agora provocavam-lhe arrepios. A vegetação rasteira estava muito seca, talvez abusada por longas e criminosas queimadas. Os animais da floresta possuíam um brilho sinistro no olhar e o encaravam como soturnos algozes. Sentindo o medo nascer no arrepio que lhe cortava a espinha, Thomas correu desesperadamente tentando fugir do cenário de trevas que o envolvia.

Sem nenhuma direção, Thomas rumou para uma clareira no cume de um morro. Lá, bem em frente ao seu nariz, estava a estranha casa. Antes que pudesse recuperar o fôlego, a porta abriu-se diante dele. No interior, apenas um imenso corredor. No final do mesmo, o estranho garotinho o afrontava. Thomas hesitou por alguns instantes. Quando esboçou o desejo de entrar na casa, ouviu uma sonora e doentia gargalhada. O moleque parecia estar zombando dele.

- E, então, o que descobriu?
- Descobri que estou cheio de raiva e doido prá acabar com você e essa inútil jornada - respondeu Thomas.

- É uma pena - admitiu o garoto. Eu pensei que você fosse diferente dos demais.
- Diferente ou não, não tenho tempo para brincadeiras. Estou me sentindo mal com tudo isso. Tudo o que eu quero é voltar prá casa!

- Mas você já está em casa, Thomas. Esse é o seu lar.
- Impossível. Nunca estive aqui antes. Meu pai sempre me preveniu para ficar afastado dessas redondezas.

- Como você pode ter certeza disso? Você realmente teve um pai? - perguntou o moleque.
- Claro que tive. Não tente me confundir ainda mais!

- Então, onde ele está?
- Pare! Não me faça pensar sobre isso... – suplicou Thomas, tentando conter, em vão, uma pequena lágrima que lhe escapava do olho esquerdo.

Por Marcio Fonseca


posted by Thiago Costa at 11:23 PM